O Velho Firmino rondava-nos vagamente por ali, sempre absorto, extraviado, soprando no ar ensopado misteriosas ladainhas. Eu via-o descer as escadas tropeçando em aliterações:
“E fria, fluente, frouxa claridade
Flutua como as brumas de um letargo.”
Uma espécie de escuridão escapava-se dele, como de um abismo, enquanto declamava Cruz e Sousa:
“Vozes veladas, veludosas vozes,
volúpias dos violões, vozes veladas
vagam nos velhos vórtices velozes
dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.”
A Fernando Pessoa, esse, amava-o ainda com maior fervor. A ele e a toda a sua legião de heterónimos. Rezava-os:
“Mas em torno à tarde se entorna
A atordoar o ar que arde
Que a eterna tarde já não torna!
E em tom de atoarda todo o alarde
Do adornado ardor transtorna
No ar de torpor da tarda tarde.”
Eu deixava-me afundar no ar de torpor da tarda tarde. Estendia-me numa das redes e logo caía num sonho rápido, em algum lugar ainda mais a sul, entre torrentes de água fria, sob um céu nu e metálico, nalguma praia de veludo refrescada pela brisa salgada do mar. Despertava minutos mais tarde, encharcado em suor, louco de sede, sufocado por aquele ar de ácaros, saía pela porta aos tropeções, cruzava a rua, e desfalecia de bruços no balcão do bar em frente, implorando pelo amor de Deus uma cerveja estupidamente gelada.
Chegara ali como um náufrago, de mochila às costas, e logo me fascinara o improvável alfarrabista, ou sebo, nome mais comum no Brasil, ocupando por inteiro os dois andares de um fatigado casarão colonial. Se eu fosse alfarrabista teria imenso trabalho para organizar a minha loja de forma a que parecesse naturalmente desorganizada. Um alfarrabista organizado, metódico, sugere-me algo vagamente monstruoso, capaz de ofender a ordem natural das coisas, um pouco como um lagarto com duas cabeças, um advogado ingénuo, um general pacifista. A maioria das pessoas que frequentam alfarrabistas gostam de pensar que caminham entre o caos, e que em meio àquele grave e silencioso tumulto podem, de repente, tropeçar na primeira edição d´ Os Lusíadas, ao preço de um romance de Paulo Coelho. Houve um tempo, romântico, em que essas coisas podiam realmente acontecer. Um tempo em que os alfarrabistas ainda respeitavam a desordem. Os novos profissionais desta área são, desgraçadamente, muito bem informados e ainda melhor organizados. No sebo do Velho Firmino Carrapato, porém, a desordem era legítima e muito antiga. Três gerações de Carrapatos haviam contribuído com o seu demorado labor para aquele esplêndido caos. Os livros multiplicavam-se, empilhados pelo chão, ou desalinhados por metros e metros de incertas estantes em alumínio, sem outra lógica que não fosse a da sua chegada ali. O Velho Firmino dispusera cinco ou seis redes amarradas às colunas, junto às largas portadas abertas para a rua, de forma que era possível folhear os livros com alguma comodidade, rezando para que a brisa da tarde fosse capaz de abrandar o calor, sim, mas não forte o suficiente para transformar em irremediável pó, pura poeira erudita, os papéis antigos.
Firmino gostava de mim. Estranhara ao princípio o meu sotaque – de onde vinha eu? Angola?! –, olhara-me perplexo:
“Na África?! E lá falam português?...”
Disse-lhe que sim, que falávamos português, tal como muita gente em Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor, e, é claro, em Portugal. Não , isso não, contestou o velho, em Portugal não. Os portugueses já mal falam português. Na verdade, acrescentou, nem sequer se pode dizer que falem, isso carece de demonstração. Ele vira, meses atrás, um filme português e não compreendera uma única palavra. Os actores emitiam uns vagos murmúrios, mantendo a boca fechada, como se fossem ventríloquos, com a diferença de que os bons ventríloquos falam pelo próprio umbigo, ou o alheio, falam pelos cotovelos, falam inclusive pela boca fechada de um português, e sempre com relativa clareza. Argumentei, já um pouco irritado, que isso tinha a ver com a deficiente qualidade técnica do som dos filmes portugueses, bem como, é certo, com a má dicção de alguns dos actores, e depois dei o braço a torcer, e concordei que sim, que os filmes portugueses deviam ser exibidos com legendas, não apenas no Brasil mas também em Portugal. Estávamos nisto quando, sereno como um milagre, entrou na loja um português. Era um homem franzino, e no entanto sólido e elegante, com o crânio rapado, uma barbicha rala, bem desenhada, uns óculos de aros redondos, em prata, que deviam ser herança de algum remoto antepassado.
“Boa tarde! Posso entrar?”
Também ele falava sem abrir a boca, mas parecia simpático, de forma que o chamei, apresentei-lhe o alfarrabista, e em breves palavras dei-lhe conta da nossa querela. Um pequeno clarão iluminou os óculos do português e ele sorriu. A questão recordava-lhe uma tese que Agostinho da Silva defendia. Talvez a tese de Agostinho nos parecesse um tanto bizarra e sem suporte científico – mas era poética. Disse isto e ficou muito sério:
“A poesia acerta mais do que a ciência. Na natureza, por exemplo, a beleza é utilitária, isto é, não existe no universo fulgor sem serventia. Se os cientistas fossem à procura da beleza ao invés da funcionalidade chegariam mais depressa à funcionalidade.”
Segundo Agostinho da Silva as línguas afeiçoam-se às geografias que colonizam. Num horizonte amplo, desafogado, o sotaque é mais aberto, e numa paisagem fechada ele tende a fechar-se. Assim, no Brasil, em Angola ou em Moçambique as pessoas falam a nossa língua abrindo mais as vogais, e nos Açores, na Madeira, em Portugal continental, mas também em Cabo Verde , fecham-nas.
Foi assim, através da poesia, que o português conquistou o árduo coração de Firmino Carrapato. Naquela tarde fossou tranquilamente pelos salões, sem pressa, não hesitando em desfazer e refazer as pilhas poeirentas. Quando a luz já começava a declinar chamou o velho. Firmino foi estudando com vagar os livros que o português escolhera. Lia alto o título, via o estado da lombada, sopesava-os. Um deles, um grosso volume ricamente encadernado, pareceu intrigá-lo:
“Discurso sobre o Fulgor da Língua? Foi um doutor daqui, do Maranhão, que escreveu isso, mas nunca ninguém o leu. Tem a certeza que quer levar?”
O português assentiu com a cabeça. O velho murmurou qualquer coisa (pareceu-me reconhecer um verso de Pessoa) e depois encolheu os ombros:
“Tá bom. Esse eu ofereço...”
Uma semana depois dei com o português sentado num bar de rastafáris. Estava feliz como um rio. Antes que eu lhe perguntasse alguma coisa mostrou-me um papel:
"Quem achar este bilhete queira por favor dirigir-se ao meu advogado, em São Luís do Maranhão, com o exemplar do livro onde o encontrou”. Vinha depois o nome e o endereço do advogado.
O português sorriu:
“Você não vai acreditar: herdei um casarão em Alcântara!”
O bilhete fora escrito pelo autor do grosso volume que o Velho Firmino lhe oferecera. O infeliz falecera anos atrás, desiludido com a desatenção do mundo, mas não sem antes ter redigido um testamento em que doava o palacete da família a quem quer que provasse ter comprado e lido o seu único livro. O português exultou:
“E sabe uma coisa? O livro é bom!”
É unha historia moi fermosa que reflexa de maneira simbólica a pouca importancia que lle damos ás cousas no seu momento. Ese libro que ficaba sen ler e sen ter tido en conta na súa época, así como ao seu autor, representan a pouca vontade que temos para valorar o que está o noso redor. Da mesma maneira sucede con autores que son recoñecidos postumamente.
ResponderEliminarSeguindo coa simboloxía podemos ver que ese libro que permaneceu tanto tempo sen ter lido e sen ser usado representa en certa maneira a todas as linguas que están aí e no nos decatamos delas. Xeralmente sabemos de linguas cando xa desapareceron como o caso da lingua bo, seguro que máis dun non sabía dela ata que leu a noticia no periódico. Finalmente, a sentenza que eu persoalmente saco desta fermosa historia é que todos os libros nos ensinan algo e a importancia de valorar a nosa cultura.
Coincido coa miña compañeira Tamara. Engadiría, ademais, outro comentario que podemos extraer desta historia: a variedade dialectal de cada lingua. Cara a metade do relato, leemos que en Portugal xa non falan portugués e, algo máis adiante, que nunhas zonas as vogais son máis abertas ca noutras. Polo tanto, o conto exemplifica unha situación que se observa en todas as linguas, pois todas presentan máis ou menos variedades.
ResponderEliminarO que existen son, pois, libros e linguas, non bos ou malos libros e linguas. E iso temos que saber valoralo.
Tamén estou dacordo coas miñas compañeiras; o que máis me chamou a atención do conto é o feito de que un libro que nin sequera o propio alfarrabista ofrece aos seus compradores agochaba unha recompensa tal.
ResponderEliminarPoderiamos comparalo co caso da nosa lingua, se ninguén fai o esforzo de comunicarse en galego nunca poderemos recibir a nosa recompensa, a lingua ficará no olvido igual que o casarão do conto ficaría sen dono.
Bonita é a aventura do libro que pasou desapercibido agochando un pequeno tesouro para que ousase descubrilo. Fermosa. Mais fermosa tamén esa sentenza que fala da beleza e a utilidade na natureza... Na natureza, e en todo en xeral. As linguas, si, tamén nelas. Non son bonitas nin feas, non soan ben, nin mal... funcionan? si, logo son linguas, todas útiles, todas funcionais, todas fermosas.
ResponderEliminarResulta interesante de ler esa reflexión-discusión sobre se era ou non portugués o que se falaba aquí, o que acolá... Unha visión da lingua tan actual. Faime rir (un riso, medio sorriso, e non de ledicia, mais quiza de resignación) cando di de que hai que subtitular as películas portuguesas porque non se entenden. Así é, así se fai co portugués de Portugal e o de Brasil, así se fai co español da Península e o dos distintos paises de latinoamerica... De súpeto a lingua vólvese allea e xa non se quere entender. Mais enténdese, e ninguén (bueno... alguén si, vémolo nesta historia) cuestiona se é ou non a mesma lingua. A mesma teima está en boca de todos co galego, veña a repetir que se hai mil formas, mil variantes e non hai maneira de entenderse así nin de facer unha lingua única... por que non, logo? Por que non ha poder o galego e si poden portugués ou español ou calquera outra lingua máis? Que lousa máis pesada teimamos aquí en botarlle á lingua para non asumir a existencia dun estándar...